terça-feira, 26 de julho de 2011

QUICO por Carlito

Os filhos de Seu Luís Ramalho e Dona Bi são meus amigos desde a nossa alegre e livre infância. Essa amizade vem de nossos pais, nossos avós e bisavós. Nossa amizade vem dos tempos que éramos índios caetés e comemos (por via oral) o Bispo Dom Pero Fernandes Sardinha nas praias de Barra de São Miguel.
O último dos onze filhos deram-lhe o nome de Francisco Prazeres Ramalho de Castro - o Quico, curtidor das coisas boas da vida. Somos amigos-irmãos, parecidos na maneira de ser e de viver.
Desde meninos nos damos bem, tivemos uma bonita juventude. Hoje na maturidade continuamos essa amizade encarando a maravilhosa vida como uma bonita viagem.
Eu tenente do Exército Brasileiro servia no Recife, na Segunda Companhia de Guardas, tropa de elite do IV Exército quando rebentou o golpe militar de 1964.
Apoiei e participei ativamente da “Revolução” com meu pelotão. Nas missões que tive, dias 1º e 2 de abril no centro do Recife, minha preocupação era um enfrentamento com os estudantes de Engenharia. A Faculdade ficava no centro da cidade, na agitação dos estudantes estariam certamente meu irmão Lelé e meu amigo Quico.
No final da tarde de dois de abril, eu vinha recolhendo a tropa cansada para o quartel, quando um sargento me instigou a dar uma carreira, dissolver os estudantes que estavam aglomerados perto da Faculdade de Engenharia. Respondi ao sargento que estávamos atrasados. Passamos com a tropa sem perturbar a pequena agitação. Só no outro dia, tive conhecimento que meu irmão Lelé e Quico estavam entre os “agitadores”. Nesse dia morreram dois estudantes em confronto no centro do Recife.
O golpe militar veio para valer. Nos finais de semana, às vezes, ficava de serviço de oficial de dia. Era freqüente a visita de Quico, estudante de Engenharia de Minas.
Entre os presos políticos havia um amigo de Quico, Rui Frazão. Todo o domingo ele levava um bolo para o Rui. Certa vez, eu era o oficial de dia, Quico chegou com o bolo. Levei-o ao xadrez. Ficamos conversando com o Rui Frazão, Arraes, Paulo Freire, entre outros.
De repente o cabo corneteiro deu um toque alto e sonoro. Reconheci o toque e falei: “É o General! Vou recebê-lo”.
Quando voltei, Quico havia desaparecido. À noite contou-me: quando eu fui receber o general, ele saiu sorrateiramente, cumprimentou a sentinela, saiu de fininho. Teve medo de ficar preso.
Fomos habituais freqüentadores das noitadas recifenses. Saíamos em busca de aventuras. Pastoreamos as noites como se fossem crianças. Festas em clubes, aniversários de 15 anos, boates. Namorar naquele tempo era de portão, pegar na mão, alguns tímidos beijinhos dentro do limite. Com a cumplicidade da namorada sempre ultrapassávamos esse limite.
Como ninguém é de ferro, visitávamos algumas casas chamadas suspeitas. Djanira, alagoana, ex-babá de Marden Bentes montou uma casa de lazer em Boa Viagem. Um luxo, mulheres bonitas provenientes da Europa, França e Bahia, além das bonitas caboclas sertanejas.
Casa freqüentada pela fina flor da sociedade local: usineiros, deputados, comerciantes, padres, e nós, sempre bem recebidos com recomendação especial da proprietária do estabelecimento.
O alagoano fora de sua terra torna-se sentimental, saudoso. Para conservar essa chama de alagoanidade freqüentemente íamos visitar a conterrânea Djanira.
Na galeria do Edifício Walfrido Antunes no Centro do Recife, havia uma pequena boate de nome Flamboyant.
Certa noite, eu, Quico fomos à boate acompanhados de Nezito Mourão, amigo de infância da Praia da Avenida da Paz, companheiro do Colégio Diocesano de Maceió. Mourão dedicou-se à carreira de jogador de futebol, jogou no Santos junto com Pelé e Coutinho no grande time dos anos 61-62-63.
Estávamos os três a bebericar, quando houve um problema. Por ciúmes ou por despeito, o dono do estabelecimento proibiu continuar servindo bebida em nossa mesa. A causa foi à cantora estar sentada em nossa mesa conversando e se divertindo. Ciúme do proprietário da boate.
Sem pretender alguma briga, pagamos a conta e preferimos sair da boate. Mesmo assim o proprietário chamou a Polícia.
Quando estávamos fora da galeria, na calçada, apareceram os policiais correndo, se dirigiram à boate.
Para melhor dispersar, cada um dos amigos tomou uma rua diferente. Eu entrava num táxi na Avenida Conde da Boa Vista, quando três policiais armados me deram ordem de prisão. Mesmo dizendo que a confusão não tinha sido comigo e ter-me identificado como tenente do Exército, eles não consideraram.
Levaram-me preso para a Delegacia na Secretaria de Segurança, à margem do Rio Capibaribe.
Esperei pacientemente mais de duas horas para ser atendido. Quando o Delegado me ouviu, olhou minha carteira de tenente do Exército, saiu por um momento.
Voltou pedindo desculpas pelo mal entendido daqueles policiais ignorantes, que infelizmente a polícia civil ainda era assim constituída, com alguns policiais que não sabiam distinguir o que era realmente um infrator.
Nesse momento entrou na delegacia um pelotão do Exército armado até os dentes trazido por caminhões com a finalidade exclusiva de me tirar da Delegacia a “manus-militaris”.
Nessa hora me tornei um bombeiro, para evitar um quebra-quebra naquela Delegacia, pedi calma. Não queria perder a razão. Eram meus soldados da Companhia de Guardas, que tinham admiração e carinho pelo seu comandante.
Foi Quico que me viu ser preso de longe. Correu para o apartamento onde eu morava com os tenentes Coelho e Fernando Marinho. Eles não admitiram minha prisão, avisaram no quartel e foram no mesmo instante para a Delegacia, quase houve um quebra-quebra. A polícia civil prender um oficial do Exército naquele tempo era uma profanação.
No outro dia deu nos jornais, manchete principal: “Polícia prende tenente do Exército que causa confusão. O Tenente Lima do Exército, o jogador de futebol Mourão e um individuo, causaram alteração em uma boate.....” O indivíduo era o Quico..
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No Recife existe uma enorme colônia de judeus estabelecida há mais de três séculos. Foram os judeus do Recife que séculos passados foram para a América e fundaram uma vila na ilha de Manhatan. Deu-se o início da cidade de Nova York.
Conheci um comerciante de madeiras que tinha duas filhas bonitas, Sara e Raquel. Tornaram-se nossas namoradas. Eu com Sara e Quico com Raquel. Nos fins de semana o pai deixava as meninas saírem, desde que juntas e sob a responsabilidade minha, afinal eu era um tenente do Exército. Ele não imaginava o perigo.
Certa noite levamos as meninas em uma festa num clube na Imbiribeira. Na hora da maquiagem, nossas namoradas foram ao banheiro.
Na mesa, Quico desabafou. Estava para acabar seu namoro. Eu lhe disse que se fosse assim, ia também mudar de namorada, confessei que preferia a Raquel. Foi quando ele falou que preferia a Sara.
Arquitetamos nossos planos. Quando as meninas chegaram, Quico pediu licença e foi dançar com minha namorada. Eu imediatamente peguei a dele. Dançamos mais de uma hora, com muita conversa de ouvido e declarações escondidas. Final da festa sai do Clube com Raquel. Quico com Sara.
Ao chegar na casa das meninas, o pai, o velho judeu ao abrir a porta, olhou admirado. Até hoje permanece a dúvida de quem era namorado de quem.
Alguns fins de semana passávamos em Maceió. O ônibus das seis da noite de sexta-feira saído do Recife ficava lotado de estudantes alagoanos.
Geralmente nós levávamos um isopor tamanho médio cheio de garrafas de cervejas, beber durante a viagem era divertimento. Quando parava em Palmares, reabastecia de bebidas.
Certa vez, já perto de Maceió, o ônibus não tinha banheiro, eu estava com uma vontade louca de fazer um xixi. Já não agüentava mais. Pedi ao motorista para dar uma parada, cheio de dores na bexiga, passava mal.
Quando o ônibus parou, desci apressado e fui para a traseira me aliviar. Nessa condição de espera, de expectativa não consegui me livrar de uma gota, aumentou a situação aflitiva e penosa, todos no ônibus esperando e eu nada. Não quis incomodar e voltei para o ônibus, sem ter me aliviado.
Quando sentei que contei para o Quico. Ele na mesma hora deu a solução: tirou as garrafas de cerveja do isopor e me deu pra fazê-lo de penico. Foi a santa saída.
O maior alívio de minha vida. Peguei o isopor com líquido pela metade e sacudi pela janela. Foi mal calculado, o vento forte, fez o líquido voltar. Os passageiros sentados nos bancos mais atrás receberam algumas pingadas. O mistério ficou. Até hoje ninguém soube como entraram pela janela aqueles pingos finos de um líquido cheirando a amônia.
São muitas as histórias com Quico, algumas mais recentes.Pena o espaço, a censura e a Justiça não deixarem contar.
No final dos anos 60 fui padrinho de seu primeiro casamento em Salvador. Eu que recebi um presente: uma cunhada, uma irmãzinha que tenho guardada no peito, Fátima Lisboa. Vive em terras soteropolitana com a filha, minha querida Adriana.
Hoje Quico é um pacato cidadão, mora nos mares da Ponta Verde, nessa terra dos Prazeres. Tranqüilo sessentão parece afinal que encontrou o amor de sua vida. Amor de verdade, verdadeiro, de vera, de Vera Lúcia.

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