domingo, 18 de outubro de 2009

CAPIXABA por Humberto Gomes de Barros

Há dois meses, minha geração sofreu sensível desfalque: sepultamos, aqui em Brasília, Oswaldo Carlos Rego do Couto. Para nós, amigos de infância ele era, simplesmente, Capixaba – apelido que ofuscou o ilustre nome de batismo. Filho de militar, nascera no Estado do Espírito Santo, onde seu pai servia. Foi, entretanto, criado em Maceió, tornando-se alagoano de corpo e alma. Sólido e musculoso, não levava desaforo para casa. Gostava de briga – e como brigava! Soco de sua mão direita era queda certa. Já adulto, travou histórico duelo com Porreta – homossexual corajoso e violento – versão alagoana do temido Madame Satã. Carlito Lima, em recente crônica, traçou a saga desse acontecimento.
Fomos colegas no Colégio Guido de Fontgalland. Estávamos no quarto ano primário. Nossa professora era Dona Maria Botelho. Certo dia, após escrever no quadro-negro uma questão de aritmética, ela fez uma proposta: “Quem resolver esse problema ganha dez”. Aceitei a provocação. Levantei-me e dirigi-me ao quadro. No caminho, passei pela carteira em que sentava Lindinalvo – um sujeito grandão, bem mais velho que eu. Em tom de menosprezo, ele me disse: “Vai lá, Lambaio”. Sem perder o passo, respondi: “Cala a boca, larápio!”. Lindinalvo virou fera. É que, justa ou injustamente, pesava sobre ele acusação de furtar objetos deixados a seu alcance pelos colegas. Descontrolado, ele se levantou e partiu para mim. Ia atingir-me pelas costas. Percebi sua aproximação e virei-me para ele. O golpe passou sobre minha cabeça. Antes que outro tapa fosse armado, adiantei-me e acertei em cheio. Deixei-lhe, na cara, a marca de meus dedos. Além do tabefe, Lindinalvo ganhou um castigo: Dona Maria Botelho colocou-o, por vários minutos, de pé, voltado para a parede. Após o castigo, Lindinalvo ameaçou-me: “Vou pegá-lo na Rua; vou quebrar-lhe a cara!”.
Fiquei preocupado. Menor e franzino, certamente levaria imensa surra. Restava-me a possibilidade de fugir correndo ou de pedir socorro ao censor.
Em qualquer dessas hipóteses, estaria desmoralizado. Acabada a aula, saí tenso. No portão de saída, Lindinalvo veio em minha direção. Foi aí que Capixaba interveio: “Antes de brigar com ele, você vai ter de bater em mim”. Lindinalvo afinou: “Mas ele me provocou...”.

Mais do que brigão, Capixaba era um imenso gozador. Adorava pregar peças. Reunidas, suas brincadeiras dariam compêndio alentado. Dava gosto ouvi-lo, a contar suas proezas: voz grave e circunspecta, ele fazia os ouvintes morrerem de rir. Carlito Lima bem poderia catalogar essas façanhas. Se o fizer, produzirá saga à altura das aventuras do turco Nasreddin Hodja.
Na última homenagem que lhe prestaram, os amigos homenagearam-no revivendo algumas “histórias do Capixaba”.

Na hora do sepultamento lembrei Manoel Bandeira. Imaginei Capixaba chegando ao céu: igual à velha Irene, ele terá dito a São Pedro: “Dá licença, meu santo?”. O celeste porteiro terá respondido: “Entre, Capixaba; mas não vale molecagem”.


GAZETA DE ALAGOAS - 18-out-2009 - HUMBERTO GOMES DE BARROS - Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, é escritor.

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